terça-feira, 9 de abril de 2024

Aliás, Fausto Nilo completa 80 anos


 Fausto Nilo faz um bruto sucesso não apenas em Quixeramobim, mas no Brasil inteiro. Nascido na terra de Antônio Conselheiro (Fausto morou na casa na qual nasceu Conselheiro) no dia 05 de abril, de 1944, o poeta, autor de mais de seiscentas composições chega aos oitenta anos, reverenciado por todos, mas principalmente por Fortaleza, cidade que o reconhece, agradece, abriga e o abraça. E na noite da cidade, cuja boemia também encantava o poeta Mário Gomes (1947 - 2014), é impossível sentar-se à mesa de um bar e não ouvir alguém cantar uma canção de Fausto Nilo. De todas elas, a que mais se escuta é “Dorothy Lamour”, de sua parceria com Petrúcio Maia (1947 – 1994), um hino constantemente entoado no calor das noites alencarinas, quando “a felicidade corre sem parar”, quase num frenesi.

Cantor, compositor, arquiteto, urbanista e ilustrador, Fausto Nilo é um artista múltiplo surgido no cenário cultural nacional dos anos setenta, com o grupo que viria a ser conhecido como o Pessoal do Ceará, cujos integrantes eram Belchior, Ednardo, Amelinha, Fagner, Téti e Rodger Rogério, entre outros. Como compositor, a poética de Fausto Nilo se destaca pela alta qualidade da sua elaboração, assumindo lugar de destaque entre os grandes compositores da sua geração.

Enquanto escrevo este texto, escuto Nilo cantar “Você se lembra”, letra sua em coautoria com Pippo Spera e Geraldo Azevedo, do disco Esquinas do deserto (2006), parte integrante do Box que contém ainda Verso e Voz (2004) ao vivo, e Casa tudo azul (2002-2006). A referida canção também ficou uma lindeza nas vozes de Geraldo Azevedo e Chico César, no trabalho Violivoz (2023).  Ouvir as canções de Fausto Nilo é como “sonhar em Casablanca e se perder no labirinto de outra história”. Logo, não é exagero dizer, que somente os mestres possuem tamanho dom.

A prezada leitora e o caríssimo leitor podem até pensar que jamais ouviram sequer uma canção desse cara incensado aqui pelo articulista. Ledo engano! Pois já ouviram, com certeza: “Eu também quero beijar” (Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Fausto Nilo), “Coisa Acesa” (Moraes Moreira e Fausto Nilo), “Meninas do Brasil” (Moraes Moreira e Fausto Nilo), “Bloco do Prazer” (Moraes Moreira e Fausto Nilo) “Chorando e Cantando” (Geraldo Azevedo e Fausto Nilo), “Pequenino Cão” (Caio Sílvio e Fausto Nilo), “Chão da Praça” (Moraes Moreira e Fausto Nilo), “Pão e Poesia” (Moraes Moreira e Fausto Nilo), “Pedras que cantam” (Dominguinhos e Fausto Nilo) e, entre inúmeras outras, “Zanzibar”, de Fausto Nilo e Armandinho, sucesso com A Cor do Som.

Avis rara da MPB, Fausto Nilo é daqueles compositores que conseguem ir dos temas banais aos mais elaborados, ou seja, consegue mergulhar no erudito sem jamais se descuidar do popular. Eis aí, talvez, um dos segredos do poeta, que assim como o eu lírico de Bilac, inveja o ourives quando escreve, imitando o amor, “com que ele, em ouro, o alto relevo, faz uma flor”. Mas diferentemente de Bilac, Fausto Nilo é um poeta que escreve como quem faz um filme. E assim, tal qual Fellini, olha a vida e entende que dela há sempre algo a se tirar, um poema, uma letra que seja.  O resultado é como se uma caravana de alegria nos atravessasse o coração todas as vezes que o ouvimos cantar, “estranho como a primeira, a primeira Coca-Cola”, descortinando os escaninhos da canção e fazendo pulsar as relações entre o compositor/cantor, a letra e o ouvinte.

No ano de 2016, as edições Demócrito Rocha lançaram o livro Fausto Nilo, da Coleção Terra Bárbara Premium, escrito por Marcos Sampaio. Lá, Fausto Nilo diz: “Quase sessenta anos da minha vida dediquei à minha sensibilidade, a um desejo de um país rico, com distribuição justa de oportunidades sociais e acho que vou morrer com essa esperança. Talvez eu não veja, mas continuo com expectativa de que se reduzam os preconceitos, as diferenças de oportunidades e dignidade...” (SAMPAIO, 2016:72). Nada menos que isso poderíamos esperar de um poeta em consonância com seu tempo. Fausto Nilo comemora oitenta anos. Vida longa ao poeta!

segunda-feira, 6 de março de 2023

O homem do casaco vermelho, de Julian Barnes


John Singer Sargent (1856 – 1925) foi um pintor italiano, tendo sido considerado como um dos melhores da sua época. No ano de 1881concluiu o retrato do Doutor Samuel Pozzi, com o nome de Doutor Pozzi em Casa. Desde o ano de 1991, o quadro pertence ao acervo do Museu Hammer, em Los
Angeles. E é a partir da pintura Doutor Pozzi em Casa, que o escritor Julian Barnes elabora, em seu O homem do casaco vermelho (2021), um maravilhoso painel da cultura francesa e inglesa do começo do século XX. O livro de Barnes foi traduzido para o português por Léa Viveiros de Castro, e publicado pela editora Rocco.

Ao apresentar ao leitor o modelo do quadro de Sargent, Barnes assim o descreve:

O modelo – o plebeu como nome italiano – tem trinta e cinco anos, é bonito, usa barba, e está olhando com um ar confiante por cima do nosso ombro direito. Ele é viril, mas esbelto, e aos poucos, depois do primeiro impacto causado pela pintura, quando podemos pensar que “o importante é mesmo o casaco”, percebemos que não. As mãos são mais importantes. A mão esquerda está no quadril; a direita, no peito. Os dedos são a parte mais expressiva do retrato. Cada um está articulado de forma diferente: totalmente estendido, dobrado até a metade, totalmente dobrado. Se nos pedissem para adivinhar a profissão do homem, poderíamos achar que era um pianista virtuoso.

Mão direita no peito, mão esquerda no quadril. Ou talvez algo mais sugestivo do que isto: mão direita no coração, mão esquerda na virilha. Isso faria parte da intenção do artista? (...). A mão direita brinca com o que parece ser uma presilha. A mão esquerda está enganchada em um dos cordões duplos da cintura, que repetem os cordões que prendem as cortinas ao fundo. O olho os acompanha até um nó complicado, do qual pende um par de borlas peludas, uma por cima da outra. Elas pendem logo abaixo da virilha, como um pênis de boi escarlate. O pintor teve essa intenção? Quem sabe? Ele não deixou nenhum relato da pintura. Mas ele era um pintor malicioso além de magnífico; era também um pintor de ostentação, não tinha medo de polêmica, e talvez, na realidade, fosse atraído por ela.

A pose é nobre, heróica, mas as mãos tornam-na mais sutil e mais complicada. Não as mãos de um pianista, afinal de contas, mas as de um médico, um cirurgião, um ginecologista (...) (BARNES, 2021, P. 7-8)

O livro de Barnes tem 272 páginas e é fartamente ilustrado. Pela pena do autor de O sentido de um fim, obra vencedora do Prêmio Man Booker Prize, de 2011, passam inúmeros nomes de todos os campos das artes e das ciências. Muitas das ações, atitudes e trabalhos dessas pessoas serviram para quebrar paradigmas criativos e comportamentais de uma época e apontar caminhos para as gerações que lhes sucederam.

Assim sendo, a figura de Pozzi é o ponto a partir do qual Barnes tece toda uma teia de relações pessoais e profissionais, que envolve obras, autores e ideias as quais são de fácil reconhecimento para uma grande parcela de leitores. Entre tantos, tem-se: Sarah Bernhardt, que teria sido uma das inúmeras amantes de Pozzi, Adrien e Robert Proust (pai e irmão de Marcel Proust e colegas médicos de Pozzi), enquanto o autor de Em busca do tempo perdido foi seu amigo, assim como também o foi Oscar Wilde, Robert de Montesquiou, Jean Lorrain e Joris-Karl Huysmann.


Na primeira orelha do livro lê-se:

Por intermédio de John Singer Sargent, autor da pintura que dá título ao livro, e do próprio Dr. Pozzi (grande colecionador), Juliana Barnes aborda um dos seus temas preferidos: a arte, cuja análise ele transforma em radiografia de toda a sociedade. E ao analisar as vidas e as obras de outros escritores célebres, como Guy de Maupassant, Barbey d’Aurevilly, Gustave Flaubert e os irmãos Goncourt, ele compõe um esplêndido e irretocável painel da vida cultural da Belle Époque, no qual não faltam os toques dramáticos do modismo dos duelos e dos assassinatos de médicos por pacientes insatisfeitos.

A leitura de O homem do casaco vermelho, de Barnes, exige tempo, paciência e atenção do leitor, tendo em vista o entrelaçamento da imensa quantidade de informações que constitui a narrativa. Isso, no entanto, não diminui em absolutamente nada a grandeza do texto. Quanto mais dele se lê, mais se deseja ler. Barnes é, sem dúvidas, um dos grandes autores do nosso tempo.

 

Para ler Julian Barnes:

1.      BARNES, Julian. O sentido de um fim. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

2.      ______________. Altos vôos e quedas livres. Trad. Léa Viveiros de Castro Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

3.      _____________. O ruído do tempo. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

4.      _____________. Mantendo um olho aberto: ensaios sobre arte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Antonio Candido sobre Adoniran Barbosa

 

" Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos; mas não é Adoniran nem Barbosa, e sim João Rubinato, que adotou o nome de um amigo do Correio e o sobrenome de um compositor admirado. A idéia foi excelente, porque um artista inventa antes de mais nada a sua própria personalidade; e porque, ao fazer isto, ele exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro das raízes europeias. Adoniran é um paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças necessárias de fora.

Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana.


A fidelidade à música e à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neo-clássica, floral e neo-colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das Rapaziadas do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as Cantinas do Bixiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também "intacta, boiando no ar."

A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar, para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida São João, na 23 de maio, no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã. Quando não há esta indicação, a lembrança de outras composições, a atmosfera lírica cheia de espaço que é a de Adoniran, nos fazem sentir por onde se perdeu Inês ou onde o desastrado Papai Noel da chaminé estreita foi comprar Bala Mistura: nalgum lugar de São Paulo. Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe no seu âmago, sem necessidade de localização.

Com os seus firmes 65 anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se prolongando na que surgiu como jiboia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal do trenzinho perdido da Cantareira." (Antonio Cândido, 1975).

 

Texto de Antonio Candido sobre Adoniran Barbosa. O texto está na contracapa do LP Adoniran Barbosa, gravado pela ODEON no ano de 1975, com direção musical de José Briamonte.